
“Meus irmãos contavam que iam à feira livre e tinha sempre alguém atrás dele. Chegaram para minha mãe e disseram que se ela não dissesse onde eu estava, eles iriam pôr fogo no barraco. Não fui presa, mas respondi a um inquérito que se chama político ou qualquer coisa assim.” Conceição Evaristo
“Estou completando 80 anos. Ganhei de presente aos 20 anos uma ditadura militar. Fiz 20 anos em 27 de março, no dia 31 de março caiu uma bomba na cabeça, uma ditadura militar, que ia mudar o destino de toda uma geração, o meu também.” Rosiska Darcy
Por Marcia Maria Cruz
A jornalista Flávia Oliveira mediou a conversa entre as duas imortais, Conceição Evaristo. pela Academia Mineira de Letras (AML). e Rosiska Darcy de Oliveira, pela Academia Brasileira de Letras, na noite do terceiro dia do Festival Literário Internacional de Petrópolis no Palácio de Cristal. As autoras revelaram ao público duas experiências de exílio no período da ditadura: da pátria quando Rosiska deixou o Brasil, e do território de origem quando Conceição foi obrigada a deixar a Favela do Pindura Saia em Belo Horizonte e seguir para o Rio de Janeiro.
Conceição Evaristo falou pela primeira vez em um evento público o que sofreu durante o período da ditadura militar. Ela contou que participava de um movimento da Igreja Católica, o JOC, “era uma das poucas mulheres”. Conceição lembrou que a perseguição da ditadura costuma ser contada a partir de relatos de intelectuais e pessoas de classe média, mas que é necessário também considerar os relatos que vêm das classes operárias que também sofrem a repressão. Conceição destacou que era ainda muito jovem, tinha 17 anos, atuava na luta por justiça social, não se baseava em teorias e “não tinha noção do que estava fazendo”.
Diante da perseguição, Conceição deixou a Favela do Pindura Saia, na região centro-sul de Belo Horizonte, mas sua família recebeu ameaças caso não delatasse onde ela se encontrava. Diziam que colocariam fogo nos barracos. Os agentes da repressão identificaram até mesmo os pôsteres de lideranças do movimento negro dos Estados Unidos que Conceição mantinha em seu quarto, como a foto de uma das líderes dos Panteras Negras, a ativista e intelectual Angela Davis.
Ao mesmo tempo que essa perseguição aos jovens que militavam em movimentos da igreja ocorria, estava sendo realizada a desapropriação das casas do Pindura Saia, “estava passando um processo de ‘desfavelamento’ no Cruzeiro”, bairro nobre da capital mineira. “Falta ainda entendimento sobre os efeitos da ditadura a partir da experiência das classes operárias.” A pobreza ficou ainda mais acentuada, com o desfavelamento, os moradores do Pindura Saia foram levados para áreas muito distantes do centro da Capital mineira, distante inclusive da possibilidade de trabalho, já que as pessoas trabalhavam em serviços domésticos nas casas de pessoas ricas e da classe média.
Ao falar pela primeira vez publicamente sobre esse tema, Conceição lamentou que os jovens da classe operária não tiveram nenhum apoio para enfrentar a repressão. “Vi que algumas pessoas que tinham condição de se esconderem, serem apoiadas, essas pessoas tiveram um certo apoio. Muito dos jovens operários, meninas da favela, porque não entendiam o que estava acontecendo, ficamos à deriva.

A ditadura militar mudou o destino de Rosiska, que estava na época com 20 anos. “Estou completando 80 anos. Ganhei de presente aos 20 anos uma ditadura militar. Fiz 20 anos em 27 de março, no dia 31 de março caiu uma bomba na nossa cabeça, uma ditadura militar, que ia mudar o destino de toda uma geração, o meu também.”
Nos primeiros anos, Rosiska estava no Brasil, mas já tinha que fazer algumas coisa às escondidas. Ao concordar com Conceição sobre o fato de que não havia uma compreensão do que estava ocorrendo no Brasil, Rosiska lembrou que alguns jornalistas acreditavam que o regime militar não duraria dois anos, mas perdurou por duas décadas. Em 1970, vivia em Genebra com o marido que é diplomata, Miguel Darcy de Oliveira. Lá passaram a fazer parte de uma rede de denúncia do que estava acontecendo nas prisões no Brasil.
Notícias do que ocorria nas prisões, inclusive com a descrição dos torturadores, eram enviadas à Rosiska e ao marido para que pudessem encaminhar às instituições de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Imprensa Internacional. “Era preciso naquele momento pedir socorro no exterior. Só um socorro externo podia intervir para nos defender, Cruz Vermelha. Todas essas instituições que, quando você ouve falar de aberração contra os direitos humanos, essas instituições aparecem imediatamente.” As pessoas do Brasil que correspondiam com Rosiska foram presas e torturadas para que, paradoxalmente, dissessem que não havia tortura no Brasil.
Rosiska também fez uma revelação de episódio vivido por ela e o marido. Miguel foi chamado ao Brasil e foi preso. Ao buscar informações sobre ele, Rosiska ficou presa na Embaixada e foi interrogada durante 12 horas. “Vimos a ditadura de perto, de muito perto. Consegui sair de lá por milagre e pedi imediatamente asilo político. A partir daquele momento, me senti uma exilada, uma refugiada”. A autora lembrou que, no exílio, o sentimento é de precariedade, “a vida em uma areia movediça”.
O exílio deles durou 15 anos e foi neste momento que Rosiska começou a escrever. “Não há nada pior para o exilado do que a perda da língua materna. Para o escritor, a perda da língua materna é como para o pintor a perda dos movimentos das mãos”, disse. O medo era nunca mais voltar ao Brasil. Os dois primeiros livros de Rosiska foram escritos em francês.
Flávia pontuou a força dos dois relatos, de duas mulheres de origens sociais diferentes, mas que sofreram os efeitos da repressão. Na sequência da conversa, Conceição contou que foi aluna de Rosiska, mas em tom de brincadeira esclareceu que foi aluna no mestrado. As duas têm quase a mesma idade, Rosiska tem 80 anos e Conceição, 77. As duas falaram sobre feminismo e sobre idade. “Quem te constitui como velho é olhar dos outros. Se alguém espera que eu vou ter 80 anos, se engana. Tenho dentro de mim uma criança, uma adolescente, uma mulher adulta e uma senhora de 80 anos. Cada uma dessas faz a sua irrupção quando bem entende.” Ao fim da palestra, as autoras seguiram para os autógrafos.

Sobre o Flipetrópolis
A primeira edição do Flipetrópolis foi viabilizada pela Prefeitura de Petrópolis, o patrocínio do Grupo Águas do Brasil e o apoio cultural do Itaú e da GE Aerospace, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Todas as atividades realizadas dentro do Flipetrópolis são gratuitas. Com a curadoria de Afonso Borges, Sérgio Abranches, Tom Farias, Gustavo Grandinetti e Leandro Garcia, acontece entre os dias 1.º e 5 de maio de 2024, no Palácio de Cristal.
Serviço:
Festival Literário Internacional de Petrópolis – Flipetrópolis
De 1.º a 5 de maio de 2024, de quarta-feira a domingo
Local: Palácio de Cristal – R. Alfredo Pachá, s/n – Centro, Petrópolis / Programação Digital – YouTube, Instagram e Facebook – @flipetropolis
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Entrada gratuita