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Conceição Evaristo e Ana Maria Machado celebram a literatura em encontro histórico

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“Não é tipo de estrangeiro de Camus. É uma experiência cultural diferente, não saber qual é o meu lugar, qual é o lugar da personagem.”  Ana Maria Machado 

“A  escrita é uma experiência de estranhamento, de exílio, momento que é seu.”  Conceição Evaristo 

Por Marcia Maria Cruz

As homenageadas do Festival Literário Internacional de Petrópolis, Ana Maria Machado e Conceição Evaristo, encerraram a última noite do evento no sábado, 4 de maio, no Palácio de Cristal. A mediação foi do jornalista Jamil Chade. Elas falaram sobre livros preferidos, a relação com o leitor 

O livro sempre foi objeto de desejo para Conceição, que tributa esse amor à educação dada pela mãe que “deixava de comprar o pão, mas comprava os cadernos dos filhos”. No entanto, o primeiro contato com a literatura foi por meio da oralidade. “Não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras.” A leitura lhe aparece como uma forma de cobrir um vazio e de dar resposta às questões da vida.

Na década de 1960, “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, a arrebatou e à família Evaristo, que se reunia em saraus para compartilhar entre si a leitura. “‘Becos da memória’ vem de algo que ‘Quarto de despejo’ me provocou.”

Carolina foi incentivo para a mãe de Conceição iniciar a escrita de um diário. Um dos planos revelados por Conceição é escrever um livro, cruzando os textos dela com os textos do diário da mãe. A obra já tem nome: “De mãe”, e também leitores, a julgar pela fila gigantesca, ao fim da mesa, para conseguir um autógrafo de Conceição. 

A obra de Monteiro Lobato despertou o interesse da menina Ana Maria Machado para a leitura. Com o passar dos anos, ela releu o autor do Sítio do  Pica-Pau Amarelo de forma mais crítica. A grande referência da escritora é a obra do poeta Carlos Drummond de Andrade. “Drummond é o livro que carrego. Leio e releio, carrego comigo, por isso ando meio de banda. Drummond é meu livro por excelência. Me habita e eu o habito.”

Jamil destacou que quem faz um festival literário é quem lê, os leitores, e convidou as homenageadas a revelar como é a relação com eles. Ana Lúcia Machado contou momentos em que se encontrou com leitores. Depois da publicação de “Infâmia”, um leitor chegou até ela para dizer “que bom que você escreveu minha história”. Durante a pandemia, escreveu o livro “Rastros e riscos” para contar como são os encontros com leitores.

Numa palestra de Ana Maria em uma escola no México, um menino se levantou para fazer uma pergunta. “‘Quantos anos a senhora tem?’ Mas disse que essa não era a pergunta, era para fazer outra pergunta. Eu tinha 67 anos. ‘Minha pergunta é como uma velha de 67 anos, lá do Brasil, sabe exatamente o que está na cabeça de um menino de 9 anos que está no México?’”

Conceição também relembrou o encontro com um leitor. Um jovem disse que se viu no conto “Os pés de bailarinos” do livro “Histórias de leves enganos e parecenças”. Conceição só compreendeu o que ele estava dizendo quando, logo depois da palestra que concedeu, assistiu ao jovem dançando em uma oficina. “O que  o menino dançava não era brincadeira”. 

Foto: @alnereis

De forma divertidíssima, Conceição contou que não gostava do livro  “Ponciá Vicêncio”, livro que lhe abriu muitas portas. “Não sei por que eu não gostava de Ponciá Vicêncio. Mas, todas as vezes que ia a uma palestra, uma pessoa falava de um pedaço do livro que era lindo, então eu lia o que a pessoa tinha achado lindo. Fui gostando do livro. E agora eu gosto de Ponciá Vicêncio”, disse, aos aplausos da plateia do Flipetrópolis.

Jamil destacou a capacidade dos artistas de dizerem algo antes de ser estudado pela ciência. Ana Maria tributa o exercício da liberdade que a escrita promove. Ana lembrou da sua formação como jornalista, que precisa ter cuidado para escrever exatamente o que o entrevistado diz. A literatura dá mais liberdade.  “O jornalismo conta a verdade. A literatura conta verdade, um se baseia em fatos e o outro não obrigatoriamente”, disse Ana Maria.

Conceição lembrou que nasceu num núcleo familiar que “fala mais do que  pobre na chuva”. Ela brincou com o ditado mineiro: “Não sei se o pobre fala tanto na chuva, se é para a chuva passar”, disse arrancando gargalhadas. O fato é que a mãe e as tias de Conceição eram contadoras de histórias. Mas alertou que cada um da família aumentava um ponto na história.

“Se um homem caísse no buraco e quebrasse a perna. No fim, o estado dele era de extrema unção”, exemplificou Conceição de como a família aumentava as histórias.

Na casa de uma família de trabalhadores que não tinha televisão, não tinha cinema, só restava falar e contar histórias.

Esse ambiente era tão rico de inspiração que desenvolveu a imaginação da menina Conceição. Nas redações na escola, a menina soltava a  imaginação para escrever sobre a festa do aniversário, passeio na fazenda do tio, o presente de Natal. “Tinha essa necessidade de criar uma realidade e, quando lia minhas redações, eu ficava toda satisfeitinha!”

 E pela maneira que a escrita permite subverter a  vida, Conceição seguiu escrevendo.“A liberdade que a escrita me deu foi a liberdade de invenção. Invenção a partir de carência, a partir do desejo ou a partir da satisfação, possibilidade de estar inventando a partir do que a vida oferece ou do que a vida me nega.”

Jamil, que vive no exterior há 24 anos, disse que acorda todos os dias com o sentimento de estrangeiro. As autoras falaram um pouco sobre como essa condição de estar fora do lugar donde se vem alimenta o processo criativo. 

Esse sentimento está  presente em grande parte da obra de Ana Maria Machado.

“ Não é tipo de estrangeiro de Camus. É uma experiência cultural diferente, não saber qual é o meu lugar, qual é o lugar da personagem”, disse. Ana Maria citou o romance “Palavra de honra”, ambientado em Petrópolis, baseado na história do bisavô, que chegou com 9 anos ao Brasil sem conhecer ninguém. “Ele sabia que tinha alguém em Petrópolis que também tinha vindo da aldeia dele.” 

No penúltimo livro infantil que publicou, “De muito longe”, a autora abordou migrações de animais, peixes e aves. Também as migrações humanas, das pessoas atravessando o Mediterrâneo e morrendo no caminho e dos que vieram escravizados da África. 

Conceição lembrou a primeira cena de “Becos da memória”, que começa com a fala de um velho. “Ele já velho traz lembrança da escravização. Quando pensa que a terra é dele, ele vê o desfavelamento. Ele dizia ‘meu corpo pede a terra’, em diálogo com Maria Nova, que, não tem como esconder, é meu alterego”, contou. Para finalizar, Conceição definiu a literatura para ela: “Lugar de escrita é o lugar onde eu posso ser”.

 Conceição reafirmou que a experiência de exílio do povo negro é histórica e ancestral e lhe permite criar as personagens. “Minha escrita criativa ou crítica é experiência de mulher negra”.

Por fim, Conceição concluiu que “a escrita é uma experiência de estranhamento, de exílio, momento que é seu.” Para concluir, as escritoras seguiram para os autógrafos.

Sobre o Flipetrópolis

A primeira edição do Flipetrópolis foi viabilizada pela Prefeitura de Petrópolis, o patrocínio do Grupo Águas do Brasil e o apoio cultural do Itaú e da GE Aerospace, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Todas as atividades realizadas dentro do Flipetrópolis são gratuitas. Com a curadoria de Afonso Borges, Sérgio Abranches, Tom Farias, Gustavo Grandinetti e Leandro Garcia, acontece entre os dias 1.º e 5 de maio de 2024, no Palácio de Cristal.

Serviço:

Festival Literário Internacional de Petrópolis – Flipetrópolis
De 1.º a 5 de maio de 2024, de quarta-feira a domingo
Local: Palácio de Cristal – R. Alfredo Pachá, s/n – Centro, Petrópolis / Programação Digital – YouTube, Instagram e Facebook – @flipetropolis
www.flipetropolis.com.br
Entrada gratuita