“Essa África mítica nos foi necessária para afirmar a nossa afro-brasilidade. Enquanto nos colocavam como cidadãos de segundo plano, como algo que sobra nessa nação, o que alimentou a nossa dignidade foi o continente africano que nós não conhecíamos.” Conceição Evaristo
“Uma árvore sem raiz está fadada a morrer. Essas histórias são a nossa raiz. Para se inscrever na comunidade internacional, temos que saber quem nós somos. As histórias nos permitem saber quem nós somos e de onde viemos.” Scholastique Mukasonga
Por Marcia Maria Cruz
As escritoras Conceição Evaristo, do Brasil, e Scholastique Mukasonga, de Ruanda, protagonizaram um encontro histórico no Palácio de Cristal, na mesa de encerramento da segunda noite do Flipetrópolis em 2 de maio. Com a medição do jornalista Jamil Chade e com tradução de Leonardo Assis, de forma leve e com grande cumplicidade, abordaram temas como reparação, sincretismo, escrita e oralidade. Em um auditório lotado com o público em geral, e também prestigiado por grande parte dos escritores convidados do Festival, abraçaram-se no reencontro Brasil e África por meio da literatura. “O Brasil tem seu corpo na América, e a alma, na África. Estamos reunindo aqui duas gigantes desses dois continentes, diria gigantes da humanidade”, dimensionou Jamil sobre o que a plateia testemunharia nesta noite.
As duas se abraçaram logo de início. “Estou emocionada. A minha irmã aqui ao meu lado, que nasceu do outro lado do Atlântico. Vou repetir a frase de Paulina Chiziane que diz que somos irmãs separadas pelo Atlântico”, disse Conceição em acolhimento à Scholastique.
Reparação foi o primeiro tema abordado por elas, a partir da declaração do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa que, recentemente reconheceu os crimes do período Colonial. A conta financeira de três séculos de exploração e assassinatos de povos africanos não se pode mensurar na avaliação da Conceição. A riqueza do continente europeu foi construída a partir da colonização e se estende na atualidade com o neocolonialismo. “Não tem como devolver para o continente africano o que foi roubado e espoliado”, destacou Conceição.
A reparação se dá no campo simbólico, e a escritora brasileira defendeu que Portugal poderia adotar medidas inspiradas nas políticas de ações afirmativas brasileiras. As duas concordam que não cabe perdão à atrocidade que foi o sistema econômico escravista. “O perdão pode apaziguar o remorso de quem fez, mas não apazigua a dor de quem sofreu e vive todas as suas consequências”, avalia Conceição. Scholastique endossou as palavras da irmã nas Letras e acrescentou uma camada ao debate: a necessidade de reconhecimento da autonomia e autodeterminação dos povos africanos. Desde 1960, quando os países africanos conquistaram a independência tardia, a colonização foi substituída por formas de cooperação que, na avaliação da autora tutsi, não deixa de ser uma tutela, uma nova maneira de exercer a dominação. “A gente gostaria de não sermos tratados como crianças incapazes e dependentes numa dominação sob a forma de proteção. Ditadores estão lá – em países africanos – com apoio dos ex-colonizadores”, afirmou Scholastique. Haverá a reparação algum dia, mas as autoras reconhecem que é um processo bem lento, lembrando que só recentemente a Inglaterra iniciou a devolução de objetos roubados de países africanos.
A imagem de uma África mítica marca a escrita dos primeiros autores negros no Brasil, o que Conceição entende como um momento necessário de autoafirmação de saberes e de uma dignidade roubada pela escravidão. “O que nos alimentava era afirmar essa África mítica. A nossa Pasárgada”, disse Conceição em referência ao que chamou de mito de fundação dos povos negros no Brasil.
Aliás, a cosmogonia vinda da África foi mantida muito pelo poder da oralidade na cultura dos povos africanos. “Essa África mítica nos foi necessária para afirmar a nossa afro-brasilidade. Enquanto nos colocavam como cidadãos de segundo plano, como algo que sobra nessa nação, o que alimentou a nossa dignidade foi o continente africano que nós não conhecíamos”, pontua Conceição. De lá para cá, a autoria negra se afirmou dentro da literatura brasileira, a ponto de incomodar, disse a escritora brasileira, recuperando a censura ao livro “O avesso da pele”, do escritor Jeferson Tenório, que estava na plateia.
Tanto a escrita de Conceição quanto a de Scholastique revelam a atenção dada à oralidade. Ambas reforçam que a escrita permite um outro registro de histórias que foram contadas pelas mães. “A escrita nos dá direitos e acesso aos direitos que, se não fossem por meio da escrita, não teríamos”, defendeu Scholastique. A escrita foi importante para denunciar o que ocorria em Ruanda, o maior genocídio do século 20, para todo o mundo.
As duas escritoras têm em comum a filiação ao catolicismo, ambas foram batizadas, embora sejam críticas a esse processo de dominação pela religião. No entanto, Conceição e Scholastique trazem para as respectivas obras as divindades dos povos africanos, que foram preservadas pelos negros de maneira a enganar o colonizador. O sincretismo, em cada um dos países, apresenta-se como uma forma de resistência à dominação e também uma maneira de sobrevivência. Scholastique conta que passou a adotar o primeiro nome, Scholastique, dado no batismo em substituição ao nome dado pelo pai, que era uma referência ao fato de ela ser a quinta filha, e manteve o sobrenome, Mukasonga, da tradição de Ruanda.
O sincretismo aparece no livro “Ponciá Vicêncio”, em que Conceição narra o medo de Ponciá de passar embaixo do arco-íris – e de menina virar menino. Algo que vem do orixá Oxumaré. Conceição retomou a definição de sincretismo por Muniz Sodré para dizer que vários elementos se misturam e formam outro elemento. “Minha mãe falava disso sem nunca ter ouvido falar de Oxumarê. O mito estava ali por vestígios. Vestígios que nos ajudam a manter essa fé que foi proibida.” A conversa, que durou quase duas horas, teve de ser encerrada a despeito da vontade do público que seguiria atento pelo número de horas que as escritoras se dispusessem a falar. Jamil destacou a literatura como resgate da ancestralidade e arma para lutar por um futuro onde todos caibam.
Sobre o Flipetrópolis
A primeira edição do Flipetrópolis foi viabilizada pela Prefeitura de Petrópolis, o patrocínio do Grupo Águas do Brasil e o apoio cultural do Itaú e da GE Aerospace, via Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Todas as atividades realizadas dentro do Flipetrópolis são gratuitas. Com a curadoria de Afonso Borges, Sérgio Abranches, Tom Farias, Gustavo Grandinetti e Leandro Garcia, acontece entre os dias 1.º e 5 de maio de 2024, no Palácio de Cristal.
Serviço:
Festival Literário Internacional de Petrópolis – Flipetrópolis
De 1.º a 5 de maio de 2024, de quarta-feira a domingo
Local: Palácio de Cristal – R. Alfredo Pachá, s/n – Centro, Petrópolis / Programação Digital – YouTube, Instagram e Facebook – @flipetropolis
www.flipetropolis.com.br
Entrada gratuita